Wagner

Parte I

A partida dos colonos suíços no Lago Neuchâtel. Museu de Arte e História de Fribourg, Suíça.

A virada do século XVIII para o XIX foi uma época de turbulência e dificuldades para a Europa, em especial para os países assolados pelas Guerras Revolucionárias Francesas e subsequentemente pelas Guerras Napoleônicas. A Primeira República Francesa entrou em conflito belicoso contra o Reino Unido, a Prússia e a Áustria. A Velha Confederação Suíça de cantões independentes, não obstante sua posição de neutralidade, caiu durante a Campanha Helvética engendrada pela França. Os anos de 1798 a 1803 marcam o período da República Helvética de molde francês, uma tentativa de governo unificado para a Suíça. Ao mesmo tempo, Napoleão invadira o norte da Itália criando a República Cisalpina, que também exercia pressão sobre cantões fronteiriços. Internamente na Suíça observava-se crescente animosidade entre cantões e elites pró- e anti-franceses.

A contrapartida deste movimento foi a coalizão Britânico-Austro-Russa que conduziu expedição para liberação da Itália e Suíça (e outros países) entre os anos de 1799 e 1800. A campanha foi sucedida com a expulsão de forças napoleônicas do norte da Itália e dos Alpes de maneira geral, mas a frente liderada pela aliança austro-russa foi duramente derrotada na Suíça, tendo destaque batalhas travadas em Zurique e Winterthur, o que forçou a Rússia a se retrair. Após isso há um período de relativa paz em termos bélicos, tendo a Suíça permanecido sob mediação de Napoleão que tentava apaziguar as aspirações de soberania dos diversos cantões. Em 1805 a Áustria volta à ofensiva, culminando com a Batalha de Austerlitz que é considerada a maior vitória de Napoleão Bonaparte. A Suíça continuaria sob este jugo até o Congresso de Viena em 1815, e o período subsequente foi de inquietação interna, pois o país tentava se reerguer economicamente após décadas de turbulência que deixaram populações campesinas ainda mais destitutas e cidades recebendo um contingente populacional que não podiam acomodar, tanto de cidadãos de cantões suíços como também de outros países. Aumentos em impostos na França deprimem a indústria e o comércio da Suíça. Em abril de 1815 acontece também a erupção do vulcão Tambora na Indonésia que é até hoje considerada a mais violenta da era moderna, responsável pelo Ano Sem Verão que agravou ainda mais a situação de pobreza e fome na Europa ao longo de 1816 com a perda de lavouras por todo o continente.

Em 1817-1818 um agente de nome Sébastien Gachet negocia com Dom João VI para trazer 100 famílias católicas do Cantão de Friburgo para montar uma colônia suíça no Brasil. Dom João designa as terras da Fazenda do Morro Queimado em Cantagalo para abrigar os colonos, subvencionando as famílias por um período de dois anos. Os imigrantes também receberiam cidadania portuguesa. A operação organizada por Gachet foi desorganizada e desastrosa, conforme detalhado no diário de bordo escrito por um dos padres que acompanhou a travessia, Padre Joye. Duzentas e sessenta e duas famílias embarcaram nos barcos que saíram do Lago Neuchâtel em Friburgo em direção aos Países Baixos, onde os aguardavam os veleiros que fariam a viagem transatlântica. Diversos percalços durante a porção européia da viagem, com imigrantes sendo explorados financeiramente pelos organizadores da operação, a espera em acampamento numa região pantanosa na Holanda, até as condições de abjeta insalubridade causada pela superlotação dos veleiros, acarretando na morte de 311 dos cerca de 2013 que emigraram, fazem com que a história destes imigrantes que viram a fundar a cidade de Nova Friburgo ainda mais triste e difícil.

No período imediatamente anterior à sua emigração, pude localizar nossos ancestrais Hans Wagner e Katharina Frey que vivia juntamente com sua mãe Anna Maria Frey e duas irmãs na vila de Cormondes, no cantão de Freiburg, atual cidade de Klein Gurmels. Tratando-se de uma vila pequena podemos concluir que Hans e Katharina já se conheciam antes de emigrar, embora ela fosse ainda muito nova. Vemos ali que a família Wagner era formada por Joseph, 32 anos, solteiro, trabalhador de moinho, Hans, 18 anos, Jacob, 16, também solteiros e trabalhando no mesmo ofício, outro de nome Joseph de 14 anos, Margaretha de 25 anos. Eu não sei qual a relação entre eles, mas presumo serem irmãos. Dada a diferença de idade de Joseph, ele poderia ser outro parente ou um irmão solteiro mais velho que ficou com tutela dos mais novos juntamente com a irmã Margaretha após o falecimento dos pais. A ausência deles neste registro me parece conclusiva de que eram falecidos em 1818.

Censo da vila de Cormondes, Cantão de Fribourg, 1818

Encontramos as mulheres da família Frey na página seguinte. Neste documento constatamos algumas observações interessantes. A lista enumera a mãe Anna Maria Frey, nascida no Cantão de Lucerna (o nome da vila segue como dúvida), 55 anos, viúva; três filhas de mesmo sobrenome. A casa onde moravam, contudo, é listada como sendo propriedade de Gitta, que é semelhante ao sobrenome que as quatro usaram quando chegaram ao Brasil, Gütermann, ou Guiterman em sua forma aportuguesada. Eram as filhas: Elizabeth, 16 anos, nascida na vila de Kriegstetten no Cantão de Solothurn, Marianna de 13 anos nascida na vila de Biberist no mesmo cantão, e nossa ancestral Katharina, 8 anos, nascida na vila de Bramois no Cantão de Valais. A vila hoje faz parte da cidade de Sion, capital do cantão.

Um ponto de grande curiosidade, sobre o qual ainda pesquiso, é o fato de que as quatro aparecem listadas como heimatlos, ou apátridas, no censo. Pessoas recebiam esta designação por vários motivos: por serem itinerantes pobres, ou ciganos, populações marginalizadas e sem direito a cidadania mesmo tendo estas pessoas nascido no país. Existem três ramos principais que compõem este grupo na Suíça e em países vizinhos: Yenish ou Jenish, Sinti e Roma. Os primeiros são concentrados mais recentemente do sul da Alemanha, os outros do leste europeu, embora historicamente eles eram relacionados. Até a metade do século XIX os cantões negavam a esta população cidadania e acesso a recursos e quaisquer serviços de welfare do Estado. Eles eram meramente tolerados em algumas comunidades, suas cerimônias de batismo, casamento e funeral não eram reconhecidas ou tinham efeito civil. Casais apátridas por vezes iam até a Itália se casar, mas ainda assim seus filhos eram considerados ilegítimos. Em algumas localidades o governo designava como heimatlos os católicos que ali viviam, isso após a Reforma Calvinista e a subsequente Guerra Civil Religiosa na Suíça onde o protestantismo dominava e não havia muita tolerância para quem seguisse outros credos.

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Yenish no Lago Lauertz, Cantão de Schwyz, 1928 – Public Domain

O sobrenome Gitta existe no registro de nomes Suíços no Cantão de Genebra, e também na Hungria. Anna Maria declarou ao chegar ser viúva de Augustin Gütermann. Eu não encontrei registro dele nos recenseamentos de Fribourg em 1811 ou 1818. O fato de que ela usava o sobrenome de nascimento é indicativo de nunca ter se casado ou de seu casamento ter ocorrido na Itália e não ter validade na Suíça, portanto as filhas não tinham o sobrenome paterno. O nome do pai de Anna Maria era Joseph Frey, sobre a mãe nada sabemos. O fato de Katharina ter nascido num cantão próximo da Itália dá força à hipótese de que os pais teriam cruzado a fronteira para se casar e eu assumo para nossa pesquisa que Augustin Gitta era o pai delas. O sobrenome foi germanizado, possivelmente, para melhor se assimilarem junto ao grupo de emigrantes de maioria germanófona que partia para o Brasil, sendo também útil para dispersar o estigma de heimatlos.

Censo da vila de Cormondes, Cantão de Fribourg, 1818

Os nossos ancestrais chegaram no primeiro veleiro a aportar no Rio de Janeiro, o Daphne, que baixou âncora no dia 14 Nov 1819, tendo eles partido de Friburgo em 4 de julho.

Ao chegarem à fazenda em Cantagalo receberam seus lotes, mas em recenseamentos feitos em anos seguintes verifica-se que muitos venderam, arrendaram ou abandonaram suas propriedades. Este parece ser o caso de Hans Wagner que partiu da colônia em 5 Nov 1823 juntamente com Fidel Meyer e cujo paradeiro foi dado como “incerto e não sabido”.

Do livro Imigrantes: a saga do primeiro movimento migratório organizado rumo ao Brasil às portas da independência de Henrique Bon, Ed. Imagem Virtual.

Um pouco mais se sabe a respeito da família Gütermann, também segundo a pesquisa de Henrique Bon:

As datas de nascimento declaradas na entrada ao Brasil nos permitem ver que estas pessoas nasceram e viveram durante um período de intensas dificuldades na Suíça. Guerra, fome, deslocamentos e incerteza eram a única realidade que eles puderam conhecer e merece a nossa reflexão.

No dia 10 Mai 1829 o casal João Vagner e Catharina Guiterman batizam seu filho José na Paróquia de São Gonçalo em Campos dos Goytacazes. O padre os lista como alemães. A transcrição abaixo foi feita pelo genealogista Marco Polo Dutra para nosso primo Antônio Carlos Wagner Cordeiro de Azeredo, que merece todo o crédito por ter criado a primeira árvore dos Wagner campistas, e que generosamente compartilhou comigo suas minuciosas notas e tantas histórias de nossos familiares. Eis o o mais antigo registro de que se tem conhecimento de nossa família em Campos:

“Aos dez de Maio de mil oitocentos e vinte nove nesta Freguesia de São Gonçalo baptisei, e pus os santos oleos ao innocente Jose filho legitimo de João Vagner, e Catharina Guiterman Alemaes forão padrinhos o Licenciado José Ferreira Passos, e Jacinta Ribeiro: de que mandei fazer este assento, que assignei (as.) O Vigr. Antonio Paes de Sa”

Nesta época o casal já tinha pelo menos duas outras filhas, as duas que chegaram à idade adulta, Delphina e Catharina. Elas são as matriarcas das duas grandes linhas da família Wagner em Campos dos Goytacazes: Wagner dos Santos e Wagner Bérenger, sobre quem falaremos em postagem subsequente.

Wagner – Parte II